O modelo desenvolvimentista da agricultura deve ser substituído por um modelo de bioeconomia da floresta para evitar a savanização irreversível da floresta
Resumo
- Para entender a importância do desenvolvimento sustentável da Amazônia é preciso conhecer a relação da água com a floresta amazônica;
- A Amazônia apresenta uma super eficiente reciclagem de água pela floresta, responsável pelos rios voadores, que causam chuvas em grande parte do Brasil;
- O modelo agropecuário desenvolvimentista aplicado na região desde a década de 70 coloca a floresta amazônica muito próxima de um ponto de savanização irreversível;
- No cenário atual, já acontecem em média duas secas intensas por década, quando antes acontecia uma a cada 15 ou 20 anos;
- Para o professor Carlos Nobre, o caminho para o desenvolvimento sustentável da Amazônia é a “bioeconomia da floresta em pé e dos rios saudáveis e fluindo”.
Por Carlos Nobre
Para entender o caminho possível para o desenvolvimento sustentável na Amazônia é preciso primeiro entender como funciona a relação entre a água e a floresta amazônica. E principalmente sobre a importância desse bioma para a estabilidade climática local e global.
Deixe-me começar com uma frase qualitativa, mas muito importante de ser entendida: A floresta tropical da Amazônia somente existe porque a floresta existe. A floresta não é simplesmente uma resposta ao clima da região, ao clima global ou a razão meteorológica de chover muito. Florestas tropicais só existem onde chove muito.
Na Amazônia há uma super eficiente reciclagem de água pela floresta, via evapotranspiração durante todo ano. A evapotranspiração é até mais alta durante a estação seca, em grande parte da amazônia, o que cria condições para que a própria floresta gere as condições meteorológicas para a chuva.
É um ar muito úmido porque o vapor d’água é transpirado pelas folhas continuamente. E é mais frio porque 70% da energia solar que chega na floresta é utilizada para a evaporação do vapor d’água, não para aquecer o ar.
Essas condições (ar úmido e mais frio) são essenciais para facilitar a formação de nuvens e gotículas de chuva. Que depois se tornam chuva, fazendo chover mesmo durante a estação seca. Isso torna a estação seca curta na Amazônia. Não há nenhum mês totalmente sem chuva, fator essencial para a existência da floresta tropical. Na Amazônia como um todo esse volume de chuvas é de 2,4 metros.
Chuva o ano todo, estação seca muito curta e contínua evaporação e transpiração da água. Esta combinação climática ecológica única evoluiu em dezenas de milhões de anos e abriu as portas para a evolução da maior biodiversidade da terra.
A super eficiente reciclagem de água pela floresta faz com que uma molécula de vapor d’água entre na bacia amazônica trazida do oceano atlântico, pelos ventos alísios, e seja reciclada entre 5 e 8 vezes antes de deixá-la. Ou seja, após a chuva as plantas buscam a água no solo pelas raízes e a levam até as folhas, que transpiram. A água transpirada pelas folhas vira nuvem e depois chuva novamente. Esse ciclo se repete várias vezes até a molécula de água deixar a bacia.
O transporte da água para fora da bacia é o que se convencionou chamar de rios voadores. Esses rios, por exemplo, alimentam as chuvas da bacia dos rios Paraná, Prata e de vários outros locais. E até mesmo a neve da parte amazônica dos países andinos.
A floresta amazônica se aproxima da savanização irreversível
O modelo agropecuário desenvolvimentista de baixíssima produtividade aplicado na amazônia desde a década de 70 via a floresta como obstáculo. E ele causa desmatamentos, degradação florestal e incêndios. Esses fatores, somados às mudanças climáticas, já estão trazendo secas mais frequentes e extremas. Como ocorreram, por exemplo, em 2005, 2010, 2015, 2016 e 2020. Ou seja, duas secas intensas por década. O que antes acontecia uma a cada 15 ou 20 anos.
Combinados, esses aspectos estão colocando a floresta muito próxima de um ponto de savanização irreversível. O que tornaria mais de 50% da Floresta Amazônica em uma savana degradada. As observações mostram que esse tipping point está muito próximo. O resultado é uma estação seca de três a quatro semanas mais longa, muito menos reciclagem de água, perda de carbono pela floresta e aumento da mortalidade das árvores do clima úmido.
Se passarmos desse ponto, a savanização de mais de 50% da floresta significará emissão de mais de 250 bilhões de toneladas de dióxido de carbono em um período entre 30 e 50 anos. Isso torna quase impossível atingirmos as metas do Acordo de Paris e implica em uma enorme perda da biodiversidade.
O caminho para o desenvolvimento sustentável da Amazônia
O que fazer para salvar a Amazônia?
O caminho é o desenvolvimento de uma inovadora bioeconomia de floresta em pé e rios saudáveis e fluindo. Bioeconomia essa baseada em manter o funcionamento da floresta em quase sua totalidade. E também o aproveitamento sustentável em Sistemas Agroflorestais (SAFs) e com a agregação de valor ao imenso potencial das espécies dos ecossistemas terrestres e aquáticos, nossa enorme diversidade em toda a amazônia.
Isso implica em zerar o desmatamento e a degradação florestal em poucos anos. E atuar para restaurar centenas de milhares de quilômetros de áreas desmatadas e áreas degradadas, notadamente no sul da Amazônia, a região de maior risco. É também essencial atingirmos os objetivos do Acordo de Paris de não ultrapassar 1,5º de aumento na temperatura média global.
Em resumo, o desenvolvimento de uma bioeconomia de floresta em pé, beneficiando as populações amazônicas e a economia do país como um todo, é um grande desafio de todos os países amazônicos. Mas pode ser revertido juntando conhecimento científico com conhecimento tradicional e fazendo com que nos tornemos uma potência ambiental da sociobiodiversidade.
Nota do editor: o presente artigo é uma adaptação da fala do professor Carlos Nobre durante o painel Flying Rivers of the Amazon, organizado pelo AgroReset para o Water World Forum For Life, uma iniciativa da União Europeia. Nobre é especialista em Ciências da Terra, pesquisador do IEA-USP, ex-pesquisador do INPE e do INPA , representante brasileiro no IPCC e consultor de projetos em bioeconomia e clima. O painel aconteceu em 5 de junho de 2021 (Dia Mundial do Meio Ambiente) e contou também com a presença de Bela Gil (chef e apresentadora de TV) e Julio Palhares (pesquisador da Embrapa), em debate mediado por Finho Levy (CEO e publisher do AgroReset).
Foto: Professor Carlos Nobre.